segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O desterro, a conquista


  
 Bezerra da Silva já não suportava o mormaço e a visão de sempre, a mesma paisagem amorfa e insossa das paredes encardidas do quarto insalubre em Tijuana. Estava ali havia uma semana, recluso, prisioneiro de seus projetos e aspirações. Sete dias sem arredar pé, sem sair do quarto sequer para uma ligeira refeição. Nem a janela permitiram abrir, de modo que o sol virou efemeridade e o ar, recluso como ele, sem fresta para renovar, se tornara viciado, intragável, doentio.

   No cortiço em que se empilhavam dezenas de minúsculos quartos mal cabia a cama de solteiro. Nos cubículos se amontoavam pelo menos outros cem brasileiros, todos aguardando dia e hora em que seriam levados à tão sonhada fronteira.

   Enquanto o comando não era dado os dias transcorriam modorrentos. Nada oprimia mais que a infindável espera. Nada a fazer senão aguardar, esperar; aguardar e esperar, cadenciando a respiração para que a aflição e o desespero não resvalassem para a loucura. Às vezes o ímpeto era arrombar a porta e sair rua afora, correndo, se embebedando da mais inebriante liberdade, se embriagando com os raios do sol e as rajadas de brisa fresca. Mas a lembrança de tudo o que ficou para trás os recompunham aos olhos da sensatez e da prudência. Diziam da polícia e dos traficantes mexicanos horrores maiores que os que pairavam sobre a guarda de fronteira norte-americana. Então, o bom senso recomendava quietude, determinava a paciência ilimitada dos monges tibetanos. 

- Vó, vou fazer um pedido que envergonha, mas tenho que fazer – falou Bezerra da Silva num só fôlego para não perder a coragem, e completou antes que a última poção de ar lhe escapasse do pulmão. – Preciso que a vó venda o lote pra passagem, tenho que comprar a de ida e a de volta, é assim que funciona.

   Desde a decisão de partir para os Estados Unidos, Bezerra da Silva iniciara uma obstinada poupança de recursos. Economizava tudo o que fosse possível guardando até mesmo as ninharias e menores moedas. Rompeu o namoro com Brigit, a francesinha que sequestrara seu coração; afastou-se dos amigos e de tudo que gerasse gasto, qualquer despesa. Passou a viver como um urso hibernando, economizando todos os centavos, toda a energia. Fazia até oito biscates por dia, e três horas por noite era o máximo que se permitia dormir. Trabalhou de garçom, segurança de boate, porteiro de hotéis baratos, guarda noite de espeluncas, lavador de pratos, personal trainer, guia de cegos, malabarista de sinaleiro, fazendo o que de honesto lhe rendesse alguns trocados. Vendeu sua coleção de gibis, depois a de CD’s e finalmente a de 387 DVD’s. Por fim vendeu a guitarra Fender, o único patrimônio que restara e que de fato importava.

   Da mãe solicitou que vendesse a aliança de diamantes, presente dos trinta anos de casamento. Do pai obteve o dinheiro da venda de um relógio Tissot, herança que nas sucessivas gerações passava de pai para filho. Até que reuniu forças para incomodar a avó, sempre solidária, sempre atenciosa. Chorou antes, no instante, e após solicitar que vendesse o único patrimônio herdado do avô Ciríaco. A idosa matriarca, sem dizer palavra, foi até o quarto e de lá veio com a escritura do terreno.

- Enxugue essas lágrimas, Bezerrinha; estava mesmo guardando esse lote para você – disse, acossada pela idade, mas satisfeita por poder ser útil e auxiliar o amado neto na materialização dos sonhos.


   O primeiro contato com o coiote se revestiu das piores impressões. O mexicano compunha a perfeita caricatura do bandido dos velhos filmes de faroeste. Franzino, sem os dentes da boca, perneta, e uma enorme cicatriz acima do supercílio direito. Ostentava na cabeça um lenço de pirata com a imagem de Che Guevara. Sem abrir a porta do quarto, falou do lado de fora. – Prepare-se que chegou a hora, e não esqueça que minha obrigação é só impedir que se percam no deserto – então deu o comando tão ansiosamente esperado. – Vamos embora.

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