quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Quando a justiça se torna uma farsa grega




José Nêumanne: Amizade, impunidade, desigualdade
A adoção definitiva da igualdade dos cidadãos perante a lei ainda é uma utopia no Brasil



Três decisões relevantes poderiam adequar o Estado Democrático de Direito “à brasileira”, como diria o presidente do Comitê Olímpico Internacional COI), Thomas Bach, a valores fundamentais da democracia burguesa, sem necessidade de ajustes, plebiscito ou reforma constitucional.
A primeira delas depende de convocação do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) para tornar súmula vinculante providência, adotada em fevereiro por maioria de sete a quatro, de jogar no lixo da História uma jabuticaba azeda e venenosa, o chamado “trânsito em julgado”. A jabuticaba (fruta que só dá em território nacional) permite a quaisquer condenados recorrerem dessas condenações até sentença final, que pode ser tomada em última instância, ou seja, muitos anos depois da condenação. Os sete vencedores – Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Tofolli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki e Luiz Edson Fachin – decidiram limitar esse prazo de recorrer em liberdade à segunda instância. Ou seja, eventual falha de sentença por um juiz de primeiro grau já poderia ser corrigida no primeiro recurso (em segunda instância) por decisão colegiada (de mais de um juiz). Magistrados, advogados e promotores cobram do STF uma posição definitiva sobre o assunto com expectativa oposta à dos defensores de milionários suspeitos de corrupção, que contam com uma inversão da posição adotada pelo STF em fevereiro, sendo, para tanto, necessária a mudança de pelo menos dois ministros, o que inverteria o placar para seis a cinco.
Essa votação seria fundamental para determinar o destino de alguns dos mais abonados infratores do Código Penal em nossos dias: os condenados em primeira instância pelos juízes Sergio Moro, Paulo Bueno de Azevedo e Ricardo Leite, titulares de varas federais criminais em Curitiba, São Paulo e Brasília, respectivamente. Se confirmada a medida adotada há meio ano, os 75 condenados pelo paranaense (enquanto nenhum com foro privilegiado foi apenado pelo Supremo), entre eles o dono da maior empreiteira do País, Marcelo Odebrecht, o ex-ministro petista Paulo Bernardo e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, teriam reduzida a perspectiva de responder em liberdade a julgamentos de turmas ou plenários dos Tribunais de Justiça dos Estados ou dos Tribunais Regionais Federais da 5ª (Porto Alegre), da 2ª (São Paulo) ou da 1ª (Brasília) Regiões.
As bancas advocatícias que representam esses denunciados, acusados e condenados, ao contrário da Justiça, do Ministério Público e da população, que enxerga no caso uma grande oportunidade de diminuir a impunidade em nossa sociedade, contam com uma virada no placar ou com a insistência com que os votantes vencidos tentam desautorizar votos vencedores. Normalmente o fazem alegando que a sessão de fevereiro não proclamou uma súmula vinculante, o que é verdade. Ou, então, que determinado réu, condenado em algum TJ ou TRF, teria sofrido “constrangimento ilegal”.
Dos quatro vencidos – Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello –, só a primeira não tomou, pelo menos até agora, nenhuma atitude para contrariar frontalmente alguma confirmação de prisão de condenado em segunda instância. Marco Aurélio Mello chegou a agendar um processo de que é relator, mas, advertido pela possibilidade de ser derrotado pelo mesmo placar de sete a quatro na ocasião, alegou doença e suspendeu a sessão plenária prevista.
Os outros dois agiram autocraticamente. Lewandowski mandou soltar o prefeito de Marizópolis (PB), José Vieira da Silva, acusado de ter desviado verbas do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e condenado em2014 pelo TRF5, do Recife. Com a suspensão da liberdade garantida pelo trânsito em julgado ficou solto até este ano, quando teve a prisão aprovada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) após o julgamento exemplar de fevereiro. Sua defesa recorreu ao STF e o processo foi sorteado para Fachin. Com o relator em recesso e o presidente de plantão, este mandou soltá-lo alegando que o réu não tinha sido julgado duas vezes, mas apenas uma. Claro: gozava de foro privilegiado e não passou pelo primeiro grau, mas seguiu direto para o segundo. Ao voltar de férias, contudo, Fachin contrariou Lewandowski e mandou prendê-lo novamente.
Caso similar ocorreu com o decano dos ministros do Supremo, Celso de Mello, que tirou da cadeia o empresário mineiro Leonardo Coutinho Rodrigues Cipriano, que matou o sócio numa boate, fez uma festa na casa noturna, onde havia escondido o cadáver, com familiares do morto entre os convidados, mas terminou descoberto, preso e condenado pelo Tribunal de Júri a 16 anos de prisão. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) reduziu a punição a 14 anos e após a decisão do STF em fevereiro mandou prendê-lo. A defesa perdeu ao recorrer ao STJ, mas Celso de Mello mandou soltá-lo. Neste caso não houve prisão posterior.
A anulação da permissão de um condenado poder recorrer em liberdade até percorrer todo o trânsito em julgado está à espera de se tornar súmula vinculante para se tornar histórica, mesmo com a transformação por uma eventual maioria de sete a quatro do plenário do Supremo não é a única polêmica ali travada. Assim como as decisões de Lewandowski e Celso de Mello, a ordem de soltar o ex-ministro Paulo Bernardo pelo antigo auxiliar no Partido dos Trabalhadores (PT), o ministro Dias Toffoli, também nomeado por Lula, causou espécie entre profissionais do Direito preocupados com sentenças polêmicas, que revelam desarmonia no STF.
Dias Toffoli mandou soltar o marido da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) alegando o mesmo “constrangimento ilegal” pretextado por Celso de Mello e Lewandowski. Para fazê-lo, contudo, não pediu a opinião do Ministério Público Federal nem esperou que a defesa requeresse habeas corpus ao TRF1. Na prática, Sua Excelência transformou o STF de última em única instância e, com isso, provocou uma reação dura do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Este recomendou ao STF que devolvesse o ex-ministro do Planejamento de Lula e de Comunicações de Dilma a uma cela da Polícia Federal (PF), em São Paulo. Antes de o Supremo aceitar, ou não, o despacho de Janot, o juiz Paulo Bueno de Azevedo tornou o beneficiado por Toffoli réu pelo crime de se haver beneficiado de propina paga à força e sem autorização em forma de descontos mensais nos vencimentos dos funcionários a ele subordinados no Ministério do Planejamento e que reivindicassem um empréstimo consignado. A prática teria resultado em R$ 100 milhões ao Partido dos Trabalhadores (PT) e R$ 7 milhões a Bernardo.
Crimes hediondos como esse estão à espera de providências como a anulação do foro privilegiado, pedido por Bernardo por causa do privilégio seletivo a que a mulher do réu tem direito. O juiz Sergio Moro foi à Câmara dos Deputados pregar sua extinção, afirmando que abria mão do próprio foro. Nenhum deputado presente à sessão da comissão especial que debate as dez medidas anticorrupção na Câmara discordou dele. Mas também ninguém concordou.
O silêncio generalizado não deixa dúvida de que, apesar da popularidade do magistrado, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei no Brasil continuará sendo uma utopia por muitos e muitos anos. Para resumir essa maldição a que parecemos eternamente condenados é possível adotar o lema “amizade, impunidade, desigualdade”, contrário ao “liberdade, igualdade, fraternidade” da Revolução Francesa. O lema seria o de George Orwell em A Revolução dos Bichos: “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”.
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